Entendendo o processo de desertificação e suas principais causas no Brasil



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A desertificação é um processo humano e histórico de transformação do uso e cobertura da terra, baseado sobretudo na degradação dos ecossistemas. Compreender os principais vetores da desertificação, com base em informações confiáveis sobre sua atual dimensão, é fundamental para conter o processo.

Este post apresenta alguns conceitos básicos para se entender a desertificação no Brasil, além de analisar as principais causas da degradação das terras no Semiárido brasileiro e no seu entorno, que levam ao agravamento do processo. Também são analisados como a seca e o aumento de eventos climáticos extremos aceleram a deterioração das terras nessa região.

Uma pesquisa recentemente publicada identificou que áreas áridas já existentes no Nordeste brasileiro têm reduzido as nuvens de chuva. As secas e a degradação severa das terras já causam aridez atmosférica. É um processo que se retroalimenta: as secas aumentam os processos de degradação das terras que, por sua vez, já impactam na redução das nuvens de chuva. Acesse este post e saiba mais sobre a pesquisa.

O processo de desertificação no Brasil

A imagem acima foi obtida a partir da constelação de satélites PlanetScope e apresenta uma área do núcleo de desertificação em Cabrobó (PE), com dados de alta resolução espacial e de alta frequência. Para saber mais sobre essa alta tecnologia de mapeamento ambiental, baixe o e-book gratuito "Como dominar o QGIS: o guia completo para mapeamento"

Nos anos 1970, ocorreu o despertar científico para a gravidade do problema da desertificação, em nível global. Desde então, o interesse político e internacional sobre a desertificação tem aumentado, especialmente sobre ecossistemas áridos, semiáridos e subúmidos secos. Essas áreas exercem um papel significativo na produção de alimentos e no desenvolvimento humano.

Em 1977, a Conferência das Nações Unidas sobre Desertificação, realizada em Nairóbi, Quênia-África, foi o primeiro fórum internacional que chamou atenção para o perigo do crescente risco de desertificação, em territórios de vários países, incluindo a região semiárida do Brasil.

O engenheiro agrônomo João Vasconcelos Sobrinho, pioneiro dos estudos sobre desertificação no Brasil, representou o Brasil no evento. O estudioso foi responsável por formular a categoria “núcleos de desertificação”, identificando a existência de seis áreas desertificadas, no então chamado “Polígono das Secas”. São eles: Gilbués (PI), Irauçuba (CE), Seridó (RN/PB), Cabrobó (PE), Cariris Velhos (PB) e Sertão do São Francisco (BA).

Segundo Vasconcelos Sobrinho (1978), a desertificação é condicionada pela intervenção do clima, dos solos, da flora, da fauna e do ser humano. O processo ocorre devido à fragilidade dos ecossistemas das terras secas em geral, que em decorrência da pressão excessiva, exercida pelas populações humanas e pela fauna nativa, perdem sua produtividade e a capacidade de recuperar-se.

A degradação do solo, que ocorre em ecossistemas áridos, semiáridos e subúmidos secos, é frequentemente referida como desertificação. A desertificação pode ser definida simplesmente como “a construção de desertos” ou “a produção de condições desérticas”.

No entanto, a Organização das Nações Unidas (ONU) deu a primeira definição abrangente do termo desertificação em 1977, que levou em consideração os impactos econômicos do processo. Definiu desertificação como “a diminuição ou destruição do potencial biológico da terra que pode levar, em última análise, a áreas desérticas” (UNITED NATIONS, 1977).

A degradação refere-se à perda da produtividade biológica ou econômica da terra, resultando na deterioração das propriedades físicas, biológicas e/ou econômicas do solo, bem como na perda de longo prazo da vegetação natural (UNITED NATIONS, 1994).

A definição inicial foi modificada em 1994, quando a desertificação foi considerada como a “degradação da terra em áreas áridas, semiáridas e subúmidas secas, resultante de atividades humanas e variação climática”, incluindo os efeitos humanos sobre a variação climática, além da perda econômica (UNITED NATIONS, 1994).

Essa definição foi amplamente utilizada, desde então, em estudos sobre desertificação, ao redor do mundo, fornecendo diferentes escopos sobre como estimar, analisar, modelar e medir desertificação.

De acordo com o Relatório especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, 2019), a desertificação é a degradação das terras nas zonas áridas, semiáridas e subúmidas secas, resultante de um conjunto de fatores naturais e antrópicos, que incluem as variações climáticas e atividades humanas.

Levando em considerando essas definições, os autores do Livro “Um século de secas”, definiram a desertificação como a “degradação da terra em áreas áridas, semiáridas e subúmidas secas, resultantes de atividades humanas e variações climáticas, que podem levar a condições desérticas (BURITI, BARBOSA, 2018).

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O que são Áreas Suscetíveis à Desertificação?

No Brasil, de acordo com um Atlas publicado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), em 2007, as áreas suscetíveis à desertificação (ASD’s) compreendiam cerca de 1.340.863 Km2 (16% do território brasileiro), abrangendo 1.488 municípios (27% do total), incluindo territórios dos nove estados do Nordeste, e de dois estados do Sudeste (parte de Minas Gerais e do Espírito Santo).

Mais de 30 milhões de pessoas (17% da população brasileira) são atingidas pelo processo. Os estados do Ceará e Pernambuco são os mais afetados pelo problema, sendo que a Paraíba, proporcionalmente, apresenta-se com a maior extensão de área comprometida, alcançando mais de 70% do seu território.

As ASD’s são áreas que podem se tornar deserto, caso aumente o nível de degradação das suas terras, ao longo do tempo. Para evitar que isso aconteça, é necessário promover o uso ordenado da terra, respeitando sua capacidade de suporte e a vulnerabilidade de cada ecossistema.

O Atlas das ASD’s no Brasil estava alinhado com a Convenção das Nações Unidas para Combate à Desertificação (UNCCD), que incluiu como áreas suscetíveis à desertificação (ASD’s) todas as regiões áridas, semiáridas e subúmidas secas do Planeta.

Como o Brasil não possui áreas com clima árido, o Atlas das ASD's considerou as áreas com clima semiárido e subúmido seco, além de também incluir suas áreas do entorno, como propensas à desertificação (MMA, 2007).

As áreas do entorno foram agregadas ao mapa das ASD’s para incluírem municípios com características similares às áreas semiáridas e subúmidas secas, com elevado risco de ocorrência de secas e enclaves de caatinga, vegetação típica do Semiárido brasileiro.

Para classificar as áreas brasileiras suscetíveis à desertificação foi adotado o Índice de Aridez, seguindo as diretrizes da UNCCD. Esse indicador é calculado pela razão entre a precipitação pluviométrica (chuva) e a evapotranspiração.

Toda a região do Semiárido brasileiro integra as áreas consideradas suscetíveis ao processo de desertificação. Uma questão importante a considerar é que a delimitação das fronteiras da região semiárida passa por mudanças periódicas. Por consequência, altera também as áreas consideradas propensas à desertificação no País. Inclusive, em dezembro de 2021, o mapa passou por mais uma mudança, por meio da Resolução Sudene no 150, que alterou a lista dos municípios integrantes da região.

Com essa atualização, foram incluídos 215 novos municípios, passando para um total de 1.427 localidades integrantes da região. Além do acréscimo dos novos municípios, a revisão também excluiu um total de 50 municípios do mapa, com base nos critérios técnico-científicos adotados.

A resolução anterior era de 2017 e incluía apenas 1.262 municípios no Semiárido brasileiro. De acordo com a nova delimitação do Semiárido (2021), a área total da região passou a ser estimada em 1.322.680,27 Km2, com uma população de 31,7 milhões de pessoas.

A inclusão dos municípios integrantes do Semiárido brasileiro segue critérios específicos, do ponto de vista técnico e científico. Os critérios utilizados para atualizar a delimitação foram estabelecidos em 2005 e permanecem até hoje. São eles: 1) média de precipitação anual abaixo de 800mm; 2) índice de aridez alto, calculado pelo balanço hídrico, que relaciona precipitação e evapotranspiração potencial; 3) risco de seca maior que 60%; e 4) continuidade territorial.

De acordo com o Livro “Um século de secas” (BURITI, BARBOSA, 2018), o primeiro mapa da atual região semiárida do Brasil foi definido em 1936, quando foi delimitado o antigo “Polígono das Secas”, dando início às primeiras políticas sistemáticas de adaptação à seca. O termo "Polígono das Secas" deixou de ser utilizado desde 1989, quando foi instituída a região do Semiárido brasileiro, pela Lei Federal n° 7.827, de 27 de setembro de 1989.

O shapefile para construir mapas com a nova delimitação do Semiárido brasileiro (2021) está disponível gratuitamente neste link.

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A desertificação como um processo histórico e sobretudo antrópico

A desertificação é um processo histórico, causado sobretudo pela forma como decidimos sobre o uso e a cobertura da terra, ao longo do tempo. A desertificação ocorre em razão da crescente deterioração dos recursos naturais, em ecossistemas de terras secas, que culmina na degradação grave ou muito grave dos solos. 

Com 1,3 milhão de quilômetros quadrados de extensão, o Semiárido brasileiro é considerado uma das maiores áreas do mundo suscetível ao processo de desertificação. As áreas mais críticas de degradação das terras na região, são os chamados núcleos de desertificação, onde os solos já estão deteriorados de forma grave ou muito grave.

Para compreender a desertificação, também é necessário considerar a interação de um conjunto de fatores, como a história do uso e ocupação das terras, diversidade biológica, políticas públicas, questões socioeconômicos e culturais.

Na história do uso e ocupação da terra, nos núcleos de desertificação - áreas gravemente degradadas -, estão atividades humanas como: mineração, pecuária extensiva, desmatamento, queimadas, ocupação desordenada do solo, extração de lenha e argila, uso intensivo da terra, sobrepastoreio e salinização do solo por irrigação (Sá, 2007; BURITI; BARBOSA, 2018).             

Os solos do Semiárido brasileiro são altamente suscetíveis à desertificação. Essa condição ocorre não por se tratar de solos pobres, mas por ainda serem jovens e pouco profundos. Em razão dessas características, quando submetidos às constantes ações de degradação natural e antrópica, os solos da região têm sua matéria orgânica comprometida.

A população das áreas secas, em grande parte, é responsável pela desertificação. Em cada período histórico, atividades econômicas exercidas por grupos sociais específicos, levam à modificação da cobertura, uso e ocupação do solo.

Diante do papel central que a ação humana exerce sobre o aumento das áreas em processo de desertificação, é necessário identificar as atividades antrópicas que aumentam a degradação dos ecossistemas. São ações que aceleram o processo de deterioração das terras, nas ASD’s do Brasil.

A seguir, destacam-se os quatro principais tipos de atividades humanas que aumentam a degradação dos solos, principal motor da desertificação:

1) Uso intensivo do solo: a principal atividade econômica do Semiárido brasileiro é a agropecuária. A exploração intensiva do solo para a agricultura leva à perda da matéria orgânica, limitando a capacidade de recuperação dos seus nutrientes.

Essa utilização excessiva empobrece os solos, em razão de reduzir o tempo de pousio ou descanso, necessário para recuperar a fertilidade dos solos e manter a produtividade das terras (SÁ, 2007).

De acordo com o Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2017), do total de estabelecimentos rurais agropecuários da região, cerca de 80% são caracterizados como de agricultura familiar, de pequeno porte (SILVA et. al., 2020). Muitas vezes, essas práticas agrícolas são feitas sem o manejo adequado do solo e sem a orientação técnica necessária, aumentando a degradação das terras.

O constante desmatamento da Caatinga, para ocupação dos solos pela agropecuária, provoca intensos impactos nas florestas secas, reduzindo grande parte da sua diversidade biológica. A maioria das espécies de plantas da caatinga perde suas folhas, para resistir à seca. Essa característica, associada à remoção total ou parcial da cobertura vegetal, deixam o solo descoberto. Com isso, os solos ficam expostos aos processos erosivos, acelerando o processo de desertificação.

2) Sobrepastoreio: o uso e ocupação dos solos do Semiárido brasileiro geralmente é inadequado à sua capacidade de suporte, interferindo profundamente na sua formação e propriedades. Além das práticas agrícolas, a pecuária extensiva é outro fator que intensifica a degradação dos solos, acelerando os processos erosivos.

As práticas de pastejo de animais de grande porte, como o gado bovino, e/ou a presença de uma superpopulação de animais, em uma área restrita, aumenta a vulnerabilidade dos ecossistemas à deterioração das terras (BURITI, BARBOSA, 2018).

Esse é um dos principais fatores da desertificação, em razão da compactação do solo, causada pelo pisoteio dos animais. A pecuária tem provocado uma série de danos ambientais, em áreas que já apresentam algum nível de degradação e com maior risco de secas, no Semiárido brasileiro.

3) Desmatamento: a forma de uso e ocupação das terras está diretamente relacionada com sua degradação. Atividades extrativistas, como a remoção da cobertura vegetal de proteção do solo da Caatinga, causa a erosão (grandes sulcos abertos no solo), porta de entrada para a desertificação. Com o desmatamento, os solos (ainda jovens e rasos do Semiárido brasileiro), ficam expostos.

A remoção da terra, de forma natural ou pela ação humana, compromete a integridade dos solos. As mudanças climáticas pioram esse processo de degradação. 

Cerca de 30% da energia consumida pelos setores industrial/comercial e domicílios do Nordeste é oriunda da biomassa florestal da Caatinga. Esse dado corresponde a cerca de um terço da demanda energética da região sendo atendido pela produção de lenha e carvão. A extração da vegetação nativa representa a segunda principal fonte energética da região, com tendência crescente (PAREYN, VIEIRA, GARIGLIO, 2015).

A lenha utilizada como fonte de energia, para produção industrial, como nas fábricas cerâmicas do Semiárido brasileiro, normalmente é explorada de forma intensiva, sem o manejo florestal adequado e sem tempo suficiente para regeneração das espécies (SÁ, 2007). A extração de madeira nativa da Caatinga, para abastecimento de indústrias cerâmicas da região, é uma das principais causas da desertificação.       

Um problema agravante é que o desmatamento da Caatinga, para obtenção de lenha e carvão, geralmente é associado à extração do solo, para as fábricas cerâmicas, a exemplo dos polos produtores de telhas, instalados na região do Seridó potiguar.

Trata-se de uma atividade produtiva de grande impacto ambiental na Caatinga. As fornalhas que alimentam a queima do produto usam grande volume de lenha, extraída da Caatinga, além do uso de água e argila, que levam ao esgotamento dos recursos naturais da área.

O desmatamento da Caatinga, para produção de lenha e carvão, é insustentável no longo prazo, por reduzir sistematicamente a cobertura florestal e aumentar o risco de desertificação. Essa forma de exploração da Caatinga deve obedecer a um plano de manejo florestal sustentável, por meio da adoção de técnicas simples, consideradas social, econômica e ambientalmente viáveis. O manejo sustentável da Caatinga permite a obtenção legal e continuada dos produtos e serviços da floresta, respeitando-se a capacidade de suporte desses ecossistemas (PAREYN, VIEIRA, GARIGLIO, 2015).

O manejo dos recursos florestais nativos aumenta a resiliência da caatinga, porque a regeneração natural predominante é por meio da rebrota de tocos e raízes. O manejo florestal também é compatível com outras formas de uso da terra, como pecuária, apicultura e obtenção de produtos florestais não-madeireiros.

O manejo sustentável da Caatinga é uma das boas práticas que combatem a desertificação. É uma forma de exploração da floresta que garante sua recuperação, regeneração e recomposição, visando à obtenção de benefícios econômicos e sociais, como geração de renda para os produtores, com a devida conservação das espécies. É ainda uma maneira de utilizar os recursos florestais da Caatinga com planejamento, respeitando-se os limites e a capacidade de suporte do bioma, retirando dele apenas o que pode oferecer.

4) Irrigação: a irrigação agrícola no Semiárido brasileiro, quando praticada sem o manejo adequado, é outro fator de degradação. Os solos da região, quando submetidos à prática da irrigação, apresentam risco de se tornarem salinos, caso não sejam tomadas as devidas precauções. Alguns tipos de solos da região, ainda pouco desenvolvidos, apresentam maior risco de salinização.

A salinização é caracterizada pelo acúmulo excessivo de sais minerais no solo, a ponto de prejudicar a germinação e o desenvolvimento das lavouras. Esses sais são provenientes da água da irrigação e/ou do lençol freático, quando este se eleva até próximo da superfície do solo. 

Degradação das terras na bacia do Rio São Francisco

O processo de salinização ocorre em solos situados em áreas com baixa precipitação pluviométrica, taxa de evaporação da água muito alta e que possuem lençol freático próximo da superfície.

Essas características são frequentes no Semiárido brasileiro. Segundo a Codevasf (2022), cerca de 30% das áreas irrigadas, em projetos públicos no Nordeste, apresentam problemas de salinização. Algumas dessas áreas já não produzem e os custos de sua recuperação são inviáveis.

João Guimarães Duque (2004), um dos pioneiros dos estudos sobre desertificação no Brasil, defendia a proposta de uma legislação específica, para regulamentar a proteção do precioso e insubstituível solo das bacias irrigadas. Segundo ele, era preciso impor um regime de severa disciplina, na exploração dessas terras, para que o manejo agrícola inadequado não destruísse irremediavelmente sua produtividade.

Desde os anos 1980, a região do Matopiba, confluência de territórios do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, passou a ser explorada para produção intensiva de grãos, principalmente milho e soja, com base na irrigação. Considerada a nova fronteira agrícola do Brasil, grande parte das terras de Matopiba são áreas suscetíveis à desertificação. O uso de insumos e pesticidas aumentam o processo de degradação dos solos, reduzindo sua produtividade.

Um estudo publicado pelo Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis) avaliou a dimensão do impacto da irrigação e das secas extremas na degradação das terras, na bacia do rio São Francisco, no período de 1985 a 2020 (PAREDES-TREJO, et. al., 2021).

Os pesquisadores evidenciaram uma expansão das áreas afetadas por secas, principalmente nas regiões do Médio e Alto São Francisco, durante os meses de inverno (junho a agosto). Houve tendência de aumento das secas extremas de longo prazo, em termos de severidade e duração, na bacia do rio São Francisco.

Um acentuado esgotamento dos níveis de água subterrânea foi observado, na bacia hidrográfica, simultâneo ao aumento da umidade do solo, durante as secas mais severas do período. O dado indica uma intensificação da captação de água subterrânea, para irrigação agrícola, às margens do rio São Francisco. Essa atividade tem aumentado o processo de degradação dos solos, na bacia hidrográfica.

Com o aumento dos eventos climáticos extremos, a exemplo das temperaturas e de uma maior frequência de secas, a tendência é de maior degradação das terras, em torno do rio São Francisco.

Hoje, a seca se estabelece de forma muito mais severa, em razão das mudanças nas condições atmosféricas, associadas às altas temperaturas. Essa condição, em um cenário de grande deficiência hídrica, torna essas secas muito mais graves, em relação aos eventos climáticos extremos que ocorreram no passado.

No estudo "Mapeamento Anual de Cobertura e Uso da Terra na Caatinga", publicado pelo projeto MapBiomas (2021), concluiu que a degradação ambiental e as secas severas levaram a Caatinga a perder 40% de sua água de origem natural, no período de 1985 a 2020.

De acordo com a pesquisa, o rio São Francisco, a maior reserva de água do Semiárido brasileiro, perdeu mais de 30 mil hectares de superfície com água, o que corresponde a cerca de 4% do seu volume total. Esse encolhimento das águas deve acirrar os conflitos por água na Bacia, com o processo de mudanças climáticas e o aumento das secas.

Outro problema decorrente do processo de degradação das terras e da supressão da mata nativa é o assoreamento na bacia do rio São Francisco. Na imagem de satélite da cobertura vegetal abaixo, o contorno em vermelho mostra mata ciliar, às margens do rio São Francisco, em formato rugoso. Já a área maior em vermelho, com aspecto liso, destaca um grande banco de areia, às margens do rio.

Isso decorre do impacto do desmatamento da caatinga, no entorno da Bacia, que deixa o solo desprotegido e ainda o torna mais vulnerável, ao processo de desertificação.

As secas extremas atingiram áreas agrícolas e de hidrelétricas, no rio São Francisco, ampliando o processo de degradação das terras. Eventos climáticos extremos, caracterizados por seca generalizada e persistente, exercem impactos de longo prazo sobre os recursos hídricos e a agricultura.

Os períodos secos são relativamente comuns no rio São Francisco. Apesar disso, há uma crescente preocupação sobre sua capacidade de responder aos eventos extremos de seca. Isso em razão da tendência de essas secas se tornarem mais frequentes e extremas, devido aos efeitos das mudanças climáticas, aumentando o processo de degradação das terras.

Nesse cenário, a avaliação dos impactos de eventos intensos de seca, na bacia do rio São Francisco, torna-se importante para desenvolver estratégias adequadas de adaptação.

Secas e eventos climáticos extremos como agravantes da desertificação

O novo Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, 2022) alertou sobre o agravamento do processo de mudança climática. A crescente deterioração da crise ecológica torna urgente a busca de alternativas de adaptação, implantando soluções para reduzir o custo humano e financeiro de desastres como secas extremas, inundações, calor extremo e incêndios florestais.

O aquecimento do Planeta aumentou a frequência e intensidade desses desastres climáticos severos. Além disso, fenômenos de longo prazo, como o aumento das temperaturas, têm tornado algumas áreas do mundo inabitáveis.

As mudanças climáticas, embora de natureza global, têm impactos distintos, nas diferentes regiões do mundo. Na última década, regiões como o Semiárido brasileiro, com 1,3 milhão de quilômetros quadrados, passou a enfrentar eventos climáticos mais extremos, na forma de secas, que se tornaram mais intensas, frequentes, abrangentes e duradouras.

Como exemplo, está a “seca do século”, ocorrida na região, no período 2011-2017. Conforme o Livro “Um século de secas”, foi a pior seca já registrada na história (BURITI, BARBOSA, 2018; PAREDES-TREJO, 2021b). Essa seca sem precedentes causou enormes danos socioeconômicos, além de distúrbios fitofisiológicos na vegetação da Caatinga.

O Semiárido brasileiro é a região do Brasil mais afetada pelas mudanças climáticas. Simulações de modelos climáticos indicam possibilidade de redução de cerca de 40% das chuvas na região, ainda neste século.

A seca é um dos principais agravantes que aceleram a degradação das terras, no Semiárido brasileiro. Esses eventos climáticos extremos intensificam as pressões sobre os recursos naturais da região, sobretudo sobre a vegetação e, consequentemente, sobre os solos.

A supressão da vegetação, pela ação humana, deixa o solo desnudo. Com isso, fatores naturais, como chuvas torrenciais e ventos, aumentam a degradação do solo e levam à erosão, sendo as primeiras evidências do processo de desertificação.

Dentre as consequências das mudanças climáticas no Semiárido brasileiro estão a perda da biodiversidade, deterioração dos solos, aumento das áreas em processo de desertificação, supressão da vegetação nativa e escassez hídrica. Esse processo de degradação das terras também tem como consequência o desmantelamento da agricultura familiar, principal base econômica da região, altamente suscetível à seca.

Os principais impactos sociais do aumento da desertificação são: aumento da pobreza, escassez de alimentos, insegurança hídrica, saúde (por exemplo, desnutrição a problemas respiratórios), além do deslocamento de pessoas para outras áreas. A migração surge como alternativa, para as populações que vivem nas áreas afetadas por secas extremas, altas temperaturas e perda da produtividade das terras (PAREDES-TREJO et. al., 2021a).

As áreas com terras altamente deterioradas ou em processo de desertificação se expandem a cada ano, especialmente com o crescimento populacional e o aumento da frequência/intensidade das secas. É um círculo vicioso, que se retroalimenta. À medida em que ocorrem secas repetidas, de forma cada vez mais frequente, agrava-se a degradação das terras da Caatinga, em função do aumento das pressões humanas sobre os ecossistemas.

A desertificação é considerada como um processo irreversível, impulsionado por fatores naturais como temperatura, precipitação, perda de cobertura vegetal e fatores humanos, como uso da terra/mudança da cobertura do solo, industrialização e urbanização (BARBOSA, 2018).

Reconhecendo os impactos potenciais da desertificação na economia, meio ambiente e sociedade, para combater a desertificação, foi incluído como um dos Programas de Desenvolvimento Sustentável Objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (UNITED NATIONS, 2015). O combate à desertificação é crucial para a redução da pobreza global, bem como para a mitigação da perda de biodiversidade e mudanças climáticas globais induzidas.

Dessa forma, secas e degradação ambiental são fatores associados, cujos impactos são potencializados pela ação humana, resultando em uma situação irreversível, que é a desertificação.

Isso não significa que as secas causam a desertificação. É claro que os ecossistemas secos se tornam muito mais vulneráveis, durante as secas extremas. Mas se houver a gestão adequada dos recursos naturais, pelo menos os solos com degradação moderada podem se recuperar, no período chuvoso. Porém, em razão da exploração intensiva das terras, com manejo inadequado, os impactos das secas são amplificados, nas áreas degradadas.

Um estudo recente sobre desertificação no Semiárido de Alagoas, baseado em monitoramento por satélite, mostrou que, nas últimas décadas, houve mudanças significativas no uso e cobertura do solo desses municípios. As interferências antrópicas se deram principalmente pela conversão de áreas com cobertura de vegetação natural para solos agrícolas (COSTA, 2021).

Embora em algumas áreas a baixa cobertura vegetal se deva a fatores climáticos ou a outros fatores naturais, em outros casos, indica a intensificação do processo de degradação das terras, causado pela ação humana, associado a fatores climáticos.

É o caso do que ocorreu durante a “seca do século” (2012-2017), cujas proporções da seca extrema e uso intensivo da terra, levou ao aumento do processo de desertificação no Semiárido brasileiro. 

A análise realizada nos municípios alagoanos de Ouro Branco e Senador Rui Palmeiras, permitiu identificar que nem sempre a resposta da vegetação, em termos de crescimento, está associada ao aumento das chuvas e da umidade do solo no local.

Em algumas áreas, não há uma forte correlação entre a precipitação e o aumento da umidade do solo, com os baixos índices de cobertura vegetal. Ou seja, mesmo com chuvas significativas, a vegetação não se desenvolveu nas áreas mais degradadas e propensas à desertificação.

A capacidade de resiliência da vegetação local depende de diferentes fatores, como tipos de solo, bem como da forma de uso e ocupação das terras. Quando falamos em resiliência, estamos nos referindo à capacidade de a vegetação se recuperar, após passar por situações de intenso estresse hídrico, como ocorreu durante a grande seca 2012-2017, que atingiu municípios do Semiárido brasileiro.

Referências

BARBOSA, H. A.; OLSSON, L. et all. IPCC. Summary for Policymakers. In: Climate Change and Land: an IPCC special report on climate change, desertification, land degradation, sustainable land management, food security, and greenhouse gas fluxes in terrestrial ecosystem. In: Humberto A Barbosa, Lennart Olsson. (Org.). An IPCC Special Report on Land Degradation. Geneva: IPCC, 2019, v. 1, p. 1-43.

BURITI, Catarina de Oliveira; BARBOSA, Humberto Alves. Um século de secas: por que as políticas hídricas não transformaram o Semiárido brasileiro. Lisboa-Portugal, 2018. 454 p.

CODEVASF. Salinização do solo. 2022. Disponível neste link. Acesso em: 10.04.2022.

MAPBIOMAS. Mapeamento Anual de Cobertura e Uso da Terra na Caatinga. Coleção 6. 2021. Disponível neste link. Acesso em: 11.04.2022.

MMA. Ministério do Meio Ambiente. Atlas das áreas suscetíveis à desertificação do Brasil. Brasília-DF: MMA, 2007.

PAREDES-TREJO, Franklin et. al. Drought Assessment in the São Francisco River Basin Using Satellite-Based and Ground-Based Indices. In: Semote Sensing. 2021, 13, 3921. Disponível neste link

PAREDES-TREJO, Franklin; BARBOSA, H. A.; GIOVANNETTONE, J.; KUMAR, T. V. Lakshmi; KUMAR-THAKUR, M.; BURITI, Catarina de Oliveira; UZCATEGUI-BRICENO, C. Drought Assessment in the São Francisco River Basin Using Satellite-Based and Ground-Based Indices. In: Remote Sensing, v. 13, p. 3921-3946, 2021a.

PAREDES-TREJO, F.; BARBOSA, H. A.; GIOVANNETTONE, J.; LAKSHMI KUMAR, T. V.; KUMAR-THAKUR, M.; BURITI, Catarina de Oliveira. Long-Term Spatiotemporal Variation of Droughts in the Amazon River Basin. In: Water, v. 13, p. 351-366, 2021b.

PAREYN, Frans; VIEIRA, José Luiz; GARIGLIO, Maria Auxiliadora. Estatística florestal da Caatinga. v. 2. Associação Plantas do Nordeste (APNE), agosto de 2015.

SUDENE. RESOLUÇÃO CONDEL/SUDENE Nº 150, DE 13 DE DEZEMBRO DE 2021. Disponível neste link. Acesso em: 11.04.2022.

VASCONCELOS SOBRINHO, J. Metodologia para identificação de processos de desertificação: manual de indicadores. Recife-PE: SUDENE-DDL, 1978.

SÁ, Iêdo Bezerra. Monitoramento e prevenção do processo de desertificação. CGEE. Nota técnica. Petrolina (PE). CGEE e Embrapa Semiárido, 2007.

SILVA, Roberto Marinho Alves da et all. Características produtivas e socioambientais da agricultura familiar no Semiárido brasileiro: evidências a partir do Censo Agropecuário de 2017. In: Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 55, Edição especial - Sociedade e ambiente no Semiárido: controvérsias e abordagens, dez. 2020. p. 314-338.

UNITED NATIONS. United Nations Convention to Combat Desertification in those countries experiencing serious drought and/or desertification, particularly in Africa. 1994.

UNITED NATIONS. Report of the United Nations Conference on Desertification. Nairobi, 29 August - 9 September. 1977.

*O conteúdo deste post foi aprofundado no Livro "Um século de secas".

**Post atualizado em: 30.09.2022, às 16h33. 

COMO CITAR ESTE ARTIGO:

LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].

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