Laboratório cria geotecnologia para captar água da chuva nas áreas em desertificação no Semiárido



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O Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis) desenvolveu uma geotecnologia para captação de água da chuva, adaptada às condições climáticas de áreas rurais do Semiárido brasileiro.

A geotecnologia funciona como uma “cisterna móvel”, contando com um sistema acoplado de previsão do tempo de curtíssimo prazo. O sistema usa Inteligência Artificial, mais precisamente Deep Learning (aprendizado profundo), além de dados de satélites e de radar meteorológico.

No Brasil, existem áreas áridas e semiáridas que, naturalmente, enfrentam até 11 meses de estiagem. Em situações de secas plurianuais ou de secas-relâmpago (secas rápidas e de forte intensidade), o impacto é muito maior para as reservas hídricas da região. Quando as chuvas chegam, geralmente se concentram em curtos períodos, sendo fundamental a captação de água da chuva para adaptação climática.

No Semiárido brasileiro, cerca de 38% da população vive na zona rural, o que corresponde a uma estimativa de 8,5 milhões de pessoas (IBGE, 2010). Nesse sentido, tecnologias hídricas para captação e armazenamento de água da chuva são fundamentais para adaptação à seca na região.

Por isso, a iniciativa do Laboratório Lapis surgiu a partir de um mapeamento das demandas por tecnologias sociais hídricas do Semiárido, publicado no Livro “Um século de secas”.

A obra destaca, com base na análise da história de mais de 100 anos de políticas públicas na região, as tecnologias sociais mais adequadas para adaptação à seca. Nesse contexto, situa as recentes políticas de implantação das tecnologias sociais como um novo paradigma de políticas descentralizadas, com resultados importantes para reduzir a vulnerabilidade social da população.

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Geotecnologia tem aplicativo acoplado para rastrear chuva

No Semiárido, além da irregularidade da chuva ao longo do tempo, há outra característica importante que é a irregularidade da chuva no espaço. Ou seja, pode chover muito em algumas localidades, enquanto em outras, não haver registro de precipitação. Por isso, uma cisterna móvel permite captar a água potável em áreas remotas, exatamente nos locais onde a chuva está ocorrendo.

Além dessa versatilidade, a geotecnologia permite rastrear a chuva e utilizar meios de transporte já amplamente utilizados na região, como carros, carroças ou motocicletas. O sistema é acoplado a aplicativos de monitoramento das condições de tempo, em cada localidade da região.

As tecnologias sociais hídricas, de baixo custo e de fácil replicação, foram implantadas no Semiárido a partir de um modelo de governança com ampla participação da sociedade civil. Todavia, ainda são insuficientes para resolver o problema da falta de água na região, especialmente durante os longos períodos de seca.

“Essas tecnologias tiveram e têm um importante impacto para adaptação à seca na região, mas no Livro ‘Um século de secas’ a gente apontou suas limitações. Por isso, a cisterna móvel surge como uma nova proposta, para suprir as lacunas identificadas, com potencial para contribuir com mais avanços nas políticas”, explica Humberto Barbosa, meteorologista e fundador do Laboratório Lapis.

>> Leia também: Brasil perdeu 55% das áreas de Agreste para o Semiárido, mostra estudo inédito

Geotecnologia é inspirada nas características de plantas da Caatinga

A inovação tecnológica, criada a partir de soluções baseadas na natureza (SbN) ou biomimética, partiu do estudo das estratégias funcionais de plantas xerófilas da Caatinga, para desenvolver um sistema de captação e armazenamento de água de chuva.

A biomimética é uma ciência que permite adotar estruturas biológicas e funcionalidades da natureza, para replicação no desenvolvimento de novos produtos. Ela permite a invenção de soluções inovadoras e tecnologias sustentáveis, que atendam às urgentes necessidades da sociedade atual.

A pesquisa do Laboratório Lapis, para criação da nova tecnologia social, foi desenvolvida no âmbito do projeto Capes Emergências climáticas, com apoio da Capes, contando com a participação do bolsista de doutorado do projeto, o designer Wedscley Melo.

Para a elaboração conceitual do design da cisterna móvel, o designer se inspirou na aplicação de características fisiológicas de plantas xerófilas, cactáceas altamente adaptadas às secas extremas no Semiárido brasileiro.

Em uma primeira etapa, foram analisados e testados em laboratório os padrões visuais de funcionamento de plantas como mandacaru, coroa de frade e palma forrageira. O foco foi analisar seus princípios funcionais de retenção e economia de água durante à seca. 

Em seguida, por analogia, as características dessas plantas foram aplicadas à invenção da geotecnologia de captação de água da chuva, seguindo pressupostos inovadores da biomimética.

Em 2022, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou Relatório que incentiva o uso em escala de iniciativas relacionadas a SbN’s, visando contribuir para superar desafios sociais, econômicos e ambientais.

Segundo o Relatório, as SbN’s são importantes para a agenda global de desenvolvimento sustentável. Elas têm potencial de colaborar com o enfrentamento, de forma eficaz, de desafios como mudança climática, insegurança alimentar e hídrica, impactos dos extremos climáticos, ameaças à saúde e ao bem-estar humano. Ao mesmo tempo, reduzem a degradação ambiental e a perda de biodiversidade.

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Tecnologia hídrica segue padrão visual de cactácea da Caatinga

 

O modelo conceitual da tecnologia hídrica foi baseado nas funcionalidades das plantas xerófilas, mais precisamente, de uma cactácea comum na Caatinga, chamada coroa-de-frade. Do nome científico Melocactus bahiensis, ela possui formato arredondado, pequeno e achatado, alcançando até 12 centímetros de altura. 

Com base nas fotografias laboratoriais, foram analisadas as estruturas internas de plantas xerófilas como o mandacaru, palma forrageira e coroa de frade. A partir da análise da composição celular dessas cactáceas e da observação do seu funcionamento, Wedscley definiu que seria utilizado o padrão visual da coroa de frade, seguindo o formato quadrangular de cada módulo para desenhar o sistema de captação de água da chuva.

Para adaptação do modelo conceitual das plantas ao desenho da “cisterna móvel”, ele adicionou um vértice à base, visando aprimorar o seu funcionamento e evitar desperdício da água armazenada nos blocos.

Quanto ao material adaptado às condições climáticas do Semiárido brasileiro, com resistência e fácil manutenção, para a construção do sistema, foi utilizado material Etileno Tetrafluoretileno (ETFE), utilizado em grandes projetos, em vários lugares do mundo, como grandes estádios, estufas e centros aquáticos.

“Esse material é um plástico à base de flúor, projetado para ter alta resistência à corrosão, em situação de altas temperaturas. Seu filme é autolimpante, devido à superfície antiaderente, e reciclável. É muito usado para telhados. Pode ser esticado em até três vezes seu tamanho. Comparado com o vidro, transmite mais luz, possui um melhor isolamento, custa menos para instalação, e é 99% mais leve”, explica o designer.

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Programa Cisternas promove acesso à água no Semiárido

Recentemente, Humberto destacou nesta matéria do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) a importância das tecnologias sociais no atual contexto de mudança climática, secas-relâmpago e desertificação no Semiárido brasileiro.

O meteorologista explicou como as mudanças climáticas estão intensificando secas, desertificação e perda de biodiversidade na região. Seca-relâmpago é uma nova tipologia de seca de curta duração e de forte intensidade, associada às altas temperaturas. Essa modalidade de seca se tornou mais comum com a mudança climática.

Os primeiros estudos sobre secas-relâmpago no Brasil e na América Latina foram desenvolvidos recentemente pelo Laboratório Lapis. Mais informações sobre a pesquisa neste link.

Humberto destacou ainda que as áreas secas e degradadas do Semiárido brasileiro estão recebendo maior radiação de calor e tendo menos formação de nuvens. Como resultado, há diminuição das chuvas e aumento da aridez em diversos municípios.

“A aridez no Brasil tem aumentado nas últimas duas décadas, representando uma transição de regiões semiáridas para áridas, que abrangem 8% do território nos últimos 20 anos. Além disso, observou-se uma transição de regiões subúmidas secas (como as do Agreste) para semiáridas, correspondendo a um aumento de 55% nesse mesmo período”, revelou Humberto Barbosa.

A alteração nas condições climáticas torna a disponibilidade de água menos previsível e intensifica os episódios de seca, uma realidade ainda enfrentada por milhares de brasileiros. Daí a importância das políticas para implantação de tecnologias sociais adaptadas, como as cisternas, em áreas rurais remotas do Semiárido.

“É muito interessante observar que as cisternas exercem um impacto socioeconômico significativo no Semiárido brasileiro. Além de reduzir a insegurança hídrica, a água armazenada proporciona também certa autonomia à população local”, destacou Humberto.

Além das ondas de calor e redução da quantidade de chuva, Humberto destaca que a atmosfera está perdendo mais água por evapotranspiração, seja a partir do solo, das plantas e dos corpos d’água. Segundo ele, a realidade atual é de secas mais intensas e frequentes, com uma maior extensão das áreas secas.

“A atmosfera está com mais sede, o que chamamos de seca atmosférica. Assim, mesmo que o padrão de chuva não tenha mudado em algumas áreas, há uma maior perda de água pela evapotranspiração. Por consequência, as secas estão mais graves. Com a redução das chuvas, o foco deve ser a captação, armazenamento e conservação das águas”, conclui Humberto.

>> Leia também: Entendendo o processo de desertificação e suas principais causas no Brasil

Mais informações

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COMO CITAR ESTE ARTIGO:

LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].

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